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Mostrando postagens com o rótulo Hugo Almeida

“Cicatrizes” no corpo e na alma

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Como todos os dossiês que a revista Cult tem publicado, o do pensador negro norte-americano William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963), que ocupa mais da metade da edição de fevereiro de 2025, é um rico e substancial painel da vida e obra do autor contemplado. No texto de abertura, “Redescobrir W. E. B. Du Bois”, Matheus Gato relaciona “temas candentes no debate contemporâneo na esfera pública e nas universidades” presentes na obra do sociólogo e historiador, com “suas formulações mais originais e pioneiras”. Alguns desses temas: branquitude, capitalismo racial, cultura, identidade, imperialismo, colonialismo, racismo, democracia, pós-abolição, pan-africanismo e literatura negra.  Tudo isso aparece também em Cicatrizes (Balaio, 2023), sexto livro do poeta baiano Carlos Machado (Muritiba, 1951). Sim, o livro abarca todos os temas de Du Bois e outros, mais ligados à história do Brasil. Até porque, “não diferem o historiador e o poeta, por escreverem em verso ou prosa (pois que be...

W. J. Solha: autobiografia sem anistia

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Ernest Hemingway (1899-1961) escreveu há 90 anos numa resenha do primeiro romance de John O’Hara (1905-1970): “Se você quer ler um livro de um homem que sabe exatamente sobre o que está escrevendo e o escreveu maravilhosamente bem, leia   Encontro em Samarra ”. Quase um século depois, pode-se dizer isso também sobre a autobiografia de Waldemar José Solha (Sorocaba, SP, 1941; vive em João Pessoa). Sob vários aspectos, W. J. Solha, como assina sua obra, é um fenômeno. Com a publicação da   Autob/i/ografia   (Arribaçã Editora), o leitor brasileiro agora pode saber o quão ricas e fascinantes são a vida e a obra desse artista de múltiplos talentos e prêmios. Poeta, romancista, contista, dramaturgo, letrista, artista plástico, pintor e ator. Ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante do Festival de Cinema de Porto Alegre, em 2013, pela atuação em   O som ao redor , de Kleber Mendonça Filho.  Como escritor, conquistou diversos prêmios, entre eles o Fernando Chinaglia, ...

“Prisão, flores e luar”: mergulho em busca do eu

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A personagem-narradora do romance de Carla Dias desfia uma série de inquietações, nunca contradições pessoais mesquinhas, mas profundas, angustiosas – e que libertam Poesia se faz apenas com palavras? A uma consulta de um poeta de 24 anos, no “Correio” do semanário Zycie Literackie (Vida Literária), a polonesa Prêmio Nobel Wislawa Szymborsksa (1923-2012) respondeu assim: “Não tente ser poético a qualquer preço: a poeticidade é chata, porque é sempre secundária. A poesia, como, aliás, toda a literatura, retira suas forças vitais do mundo em que vivemos, das vivências realmente vividas, das experiências realmente sofridas e dos pensamentos que nós mesmos pensamos. É preciso descrever o mundo continuamente, porque, afinal, ele não é o mesmo de tempos atrás”. [ Correio literário ou como se tornar (ou não) um escritor , tradução de Eneida Favre, Belo Horizonte, Editora Âyiné, 2024, p. 37]. No recente Prisão, flores e luar (Sinete, 2024), Carla Dias [Santo André, 1970; vive em São Paulo] ...

"A felicidade é um inferno" | Amor e solidão nos contos de Jussara de Queiroz

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Nos anos 1970, auge do conto no Brasil, o estado de Minas Gerais chegou a ser chamado de terra do conto. Com justiça. Autores já consagrados anteriores àquela época passaram a ser mais conhecidos e lidos, entre eles Murilo Rubião, Luiz Vilela e Sérgio Sant’Anna. Sem falar em mestres de anos anteriores, como Aníbal Machado e Guimarães Rosa. Na década de 1970, incontáveis ótimos contistas foram revelados em Minas. Hoje o conto não tem mais tanto espaço na mídia nem nas editoras. Uma pena. Mas o gênero segue em alta entre escritores do país inteiro.  Minas continua solar de excelentes contistas, de variadas gerações. Um exemplo expressivo e recente é Jussara de Queiroz (Patrocínio, 1953; vive em Belo Horizonte), autora de A felicidade é um inferno (Nauta, 2024), que traz contos primorosos no enredo, na linguagem e na estrutura. Ela não é escritora estreante. Em 1994, Jussara publicou o romance Voo Rasante (Editora O Lutador), Prêmio BDMG Cultural de Literatura de 1992. É autora vence...

Dois grandes contadores de histórias

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Professor aposentado pela USP, com temporadas em universidades dos Estados Unidos e de Portugal, o romancista, poeta e crítico literário Álvaro Cardoso Gomes [Batatais, 1944; vive em São Paulo] talvez seja o mais eclético e produtivo escritor brasileiro. Autor do best-seller juvenil A hora do amor (1986), tem quase cem livros publicados, a maioria infantojuvenis, alguns vencedores do Prêmio Jabuti, e acaba de lançar o delicioso, emocionante, comovente e às vezes divertido O contador de histórias (FTD, 2024).  Trata-se de uma cativante biografia romanceada do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), de A ilha do tesouro (1883), narrado em primeira pessoa pelo enteado pré-adolescente Lloyd Osbourne, que o chamava de tio Luly, mas o amava como se fosse o verdadeiro pai, seu “pai espiritual”. Álvaro escreve sobretudo acerca da gênese do célebre livro, a vida de Stevenson desde o nascimento, a infância e a juventude e depois a vida alegre e feliz com a escritora norte-americana F...

"Usufruto de demônios", a lapidação da dor

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  Por Hugo Almeida Nos anos 1970/1980, o escritor Ricardo Ramos (1929-1992) era considerado nos meios literários o maior conhecedor do conto brasileiro contemporâneo. Como sempre houve, hoje existem vários grandes leitores de contos de autores nacionais. Entre os primeiros está Whisner Fraga (Ituiutaba-MG, 1971; vive em São Paulo), também um grande contista, a exemplo do filho de Graciliano Ramos (1892-1953). Desde que criou o canal Acontece nos Livros, no YouTube, há seis anos, Whisner já comentou cerca de 200 obras de ficção, a maioria contos de escritores brasileiros, principalmente publicados por pequenas editoras. Whisner acaba de lançar o seu 12 º livro, Usufruto de demônios  (Ofícios Terrestres Edições), volume de minicontos, alguns editados em vídeos no YouTube. Em 2020, ele havia lançado O que devíamos ter feito (Patuá), contos originais, poéticos e por vezes cruéis. Na nova coletânea, prevalecem o tom e o tema da dor, como da pandemia da Covid-19, mas agora ainda mai...

Carta de um leitor

São Paulo, 25 de fevereiro de 2022.   Caro Whisner, O que logo chama a atenção, em todos os seus contos de O que devíamos ter feito , é o estilo peculiar, singular, a orginalíssima dicção literária, a poesia que atravessa o livro inteiro (tudo “sofisticado”, com “arsenal metafórico e simbólico”, como diz Jamil Snege no prefácio), episódios muitas vezes cruéis (“espécie de cadeia de explosões”), histórias marcadas quase todas pela incerteza dos narradores e personagens, pela indecisão, pelo medo, tudo reflexo da vida perversa atual. Um trabalho primoroso.   Também a estrutura do livro (a sequência dos textos) está muito bem organizada, quase circular, início e fim com as dores da pandemia, a interlocução com a companheira Helena do narrador, entremeada com narrativas em que ela não é citada, um certo intervalo que traz outro tom, ainda bem pessoal, ao texto.   São incontáveis as analogias e metáforas e outras figuras de linguagem e achados literários bastante o...

Certos casais - as variantes da intimidade

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Por Whisner Fraga   Hugo Almeida (1952) é um escritor mineiro, desde 1984 radicado na capital paulista. É autor do romance Mil corações solitários , ganhador do Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira em 1988. Este foi o maior prêmio literário do país nos anos 1980 e 1990. Também são de sua autoria os contos de Cinquenta metros para esquecer , do infantojuvenil Meu nome é fogo , entre outras obras. Certos casais  (Laranja Original, 2021) é uma coletânea de contos, dividida em duas partes. O Livro I contém oito narrativas e o Livro II, apenas uma. Logo nas primeiras páginas notamos a influência de Dalton Trevisan – frases rápidas, curtas, flashes, que mais insinuam do que revelam. Claro que um autor do porte de Almeida não tem apenas uma influência, mas é a mais óbvia para o leitor. Ao mesmo tempo, as palavras são encadeadas de modo a favorecer a musicalidade, a poética, o lirismo. Hugo é um escritor refinado, de maneira que é preciso mantermos a atenção ao que escreve, isso...