Literatura e cinema: Madame Bovary
Para nos aprofundarmos na intersecção entre cinema e literatura, tomaremos como ilustração o romance “Madame Bovary”, escrito por Gustave Flaubert em 1856 e o filme homônimo de Chabrol. Falemos brevemente sobre o filme.
A produção data de 1991 e é a sétima das oito adaptações do romance de Flaubert. O diretor Claude Chabrol (1930 – 2010) foi um dos idealizadores da “Nouvelle Vague”, movimento artístico do cinema francês que visava transgredir as regras do cinema comercial com uma montagem inesperada, original, sem concessões à linearidade narrativa. Chabrol se dizia “herdeiro” de Flaubert. Talvez isso explique por que na maioria de suas obras há críticas à burguesia e à violência da natureza humana. Uma frase sua é marcante a respeito da sua visão de cinema: “Prefiro o microscópio ao telescópio. Nos meus filmes as pessoas gritam pouco. Mas isso é até mais assustador do que se elas gritassem muito.”
Adentremos agora nas considerações sobre o livro.
Não é exagero afirmar que Flaubert mudou a história do romance. Contudo, mais impressionante que isso, é o fato de que ele chegou a tal proeza sem fazer uso de grandes acontecimentos. O gênero romance, até o início do século XIX, se destacava por apresentar histórias fantásticas, personagens maiores que a vida, fatos heroicos e gloriosos. Flaubert rompeu com esses preceitos apresentando a vida cotidiana de seres extremamente medíocres, num meio medíocre, com uma trama medíocre.
O próprio Flaubert disse que buscou exaustivamente a palavra exata: o principal de cada ação, o essencial em cada fato. Cada cena, cada frase tinha a maneira precisa de ser escrita. E o critério era somente um: estético. Ele queria um romance que se sustentasse pela linguagem. Se Balzac tivesse dez por cento do cuidado que Flaubert tivera com a linguagem, com certeza não teria escrito seus noventa romances. Como surgiu essa obsessão de Flaubert pela linguagem?
Aos 28 anos ele escreveu a peça “Santo Antônio” e mostrou a dois amigos que, após escutá-la da boca do próprio autor durante quatro dias, sentenciaram: “Você deve jogá-la no fogo”. Depois dessa decepção, Flaubert resolveu escrever “Madame Bovary”, pensando e sentindo extenuantemente cada palavra que transpunha para o papel. Por isso levou cinco anos para concluir a obra: de 1851 a 1856.
Em 1852, enviou uma carta à sua amante sobre o livro que estava escrevendo: “O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer é um livro sobre o nada, um livro sem ligação exterior, que se manteria pela força do seu estilo, um livro que não teria quase tema, ou que o tema fosse invisível”.
Em outra ocasião Flaubert escreveu: “A história, a aventura não me interessa. Penso, quando escrevo um romance, em expressar uma cor. Um tom. Em Madame Bovary tive a ideia de expressar um tom cinza, a cor do mofo da existência enclausurada.”
O crítico Axel Preiss afirmou sobre a obra: “Madame Bovary é muito mais a aventura de uma narrativa do que a narrativa de uma aventura.”
Os dois trechos de Flaubert somados à afirmação de Preiss podem servir de base para a discussão que há tempos ocupa os teóricos da comunicação: a adaptação de obras literárias para o cinema. Se admitirmos “Madame Bovary” como metonímia do problema, podemos formular assim a questão central dessa discussão: como é possível adaptar um livro sobre o nada para o cinema? Ou ainda: como levar o ‘tom’, a ‘cor’ do romance para as telas? Em termos ilustrativos: como transpor o trecho abaixo contido no romance para o cinema?
“Como Emma ouvia, nas primeiras vezes, a lamentação sonora das melancolias românticas repercutirem em todos os ecos da terra e da eternidade! Se a sua infância tivesse transcorrido no fundo de alguma loja de bairro comercial, ter-se-ia talvez aberto às invasões líricas da natureza, que comumente não chegam ao nosso conhecimento senão pela tradução dos escritores.”
Vale ressaltar que não se trata de purismo, tampouco de uma hierarquia entre literatura e cinema. Trata-se, isto sim, de admitirmos que literatura e cinema são dois modos diferentes de expressão. As particularidades do texto literário jamais se encaixam de forma pura e simples nos 24 quadros por segundo do cinema. Por quê?
A partir de Flaubert, a linguagem passou a ser tão ou mais relevante que o enredo. O “como” passou a sobressair-se ao “o quê”: as figuras de linguagem, o tipo de narrador, o estilo direto, indireto ou indireto livre. Em suma: na literatura, ou melhor, na alta literatura, a expressão tende a ter mais peso que o conteúdo.
No cinema, o estilo é de outra ordem: fotografia, movimento de câmera, uso da música e da trilha sonora, direção de atores etc. Quando se leva uma obra literária ao cinema está se fazendo menos uma adaptação do que uma verdadeira transposição de um meio a outro. É como um poema em língua estrangeira. É lícito falar em tradução? Na verdade, ao traduzir um poema, está se criando outro. Ou no mínimo recriando o poema original. Guilherme de Almeida falava em transfusão.
Mas isso não significa que seja impossível fazer ótimos filmes a partir de grandes obras literárias. Vidas Secas é um exemplo. A explicação talvez resida no fato que a intenção do diretor Nelson Pereira dos Santos não era captar a literalidade da trama, mas o espírito mais fundo da obra de Graciliano Ramos, incorporando na fotografia, na montagem e no trabalho com o som a secura do ambiente e da vida que oprime a família migrante.
Assim sendo, podemos afirmar que o próprio filme de Chabrol é uma “transfusão bem sucedida.” A esse respeito escreveu o jornalista Marcelo Coelho:
“Não se trata de uma versão do romance de Flaubert. Nem de uma transposição. Chabrol procurou traduzir a linguagem de Flaubert para o cinema – e não apenas fazer uma adaptação cinematográfica da história do romance. Nada mais errado, portanto, do que dizer que Chabrol “traiu” Flaubert, ou dizer que o erro de Chabrol foi ter sido fiel demais ao romance. Ao contrário, ele foi extremamente fiel não ao romance, mas as intenções de Flaubert”.
Mesmo Flaubert afirmando que queria um livro “sobre o nada”, um livro que se mantivesse pelo estilo, várias questões são levantadas no romance e bem exploradas no filme. Podemos dizer que o romance é uma espécie de radiografia da sociedade burguesa da França do século XIX, que sofria profundas transformações.
Um dos pontos levantados é a crise da fé religiosa e a ascensão da ciência, principalmente motivada pelo positivismo que, por sua vez, não dava conta das mazelas do homem (lembremo-nos do pobre Hipólito que tem sua perna amputada devido ao procedimento equivocado de Charles). Esse cientificismo é ilustrado no personagem do farmacêutico Homais. Ele é o veículo do discurso da objetividade científica, a personificação dos ideais iluministas. Eis uma de suas frases que ilustra seu pensamento: “Meu Deus é o deus de Sócrates, o deus de Voltaire”.
A segunda crítica que Flaubert desfere é contra o sistema social e financeiro da Europa. O comerciante Lheureux é a personificação da ascensão do capitalismo (tenhamos em mente que a Revolução Industrial colhia frutos na primeira metade do século XIX) e, de forma mais abrangente, da hipocrisia e frieza da burguesia.
A terceira “análise” feita pelo autor é sobre a mediocridade e a moralidade. Flaubert foi processado por ter escrito um romance obsceno, com “ofensas à moral pública e religiosa”. A cena da carruagem, por exemplo, foi cortada pela revista que publicou o romance pela primeira vez. A mediocridade está em todos os personagens, mas em Charles Bovary é gritante. Por ser uma personagem plana, ela não surpreende o leitor ou espectador. A esse respeito fica claro o sentimento de Emma sobre ele: “A conversa de Charles era sem relevo como uma calçada e as ideias de todo mundo nele desfilavam com seu traje comum, sem excitar emoções, riso ou devaneio.”
Rudolph (o primeiro amante) é a ilustração da nobreza decadente; personificação do galanteador que faz uso da retórica para conquistar mulheres ingênuas. Diz ele para seduzir Emma: “Sempre os deveres. Estou cheio dessas palavras.” E ainda: “A paixão é a única coisa que existe sobre a Terra”. E mais: “Não resistimos aos sorrisos dos anjos”.
Leon (o segundo amante) é a personificação da ingenuidade romântica. Isso fica claro em suas palavras, como por exemplo, no excerto: “Prefiro a música alemã, aquela que nos faz sonhar.” Lembremos que na Alemanha, terra de Goethe e Beethoven, acontece o ápice do Romantismo.
Emma, ao contrário de Charles, é uma personagem esférica. Ao tom cinza que perpassa a obra, Flaubert contrapõe o vermelho de Emma, cor da paixão, da embriaguez que ela aprende a desejar lendo romances de amor e aventuras. Como Cervantes, Flaubert critica a literatura pelos desvios da protagonista. Critica o Romantismo:
“E Emma procurava saber o que exatamente se entendia na vida pelas palavras felicidade, paixão e embriaguez, que lhe haviam parecido tão belas nos livros.”
Eis que não somente o leitor, mas a própria heroína fica na espera que algo aconteça. E nada de extraordinário acontece. Ela é uma mulher sonhadora e por isso se casa, mas o casamento não dá conta dos seus anseios. O próprio título “Madame Bovary” mostra Emma aprisionada ao médico medíocre que a impede de sair em busca de aventuras. Por não ter sua subjetividade bem construída, ela sempre busca no outro a sua completude. Então ela trai. Mas até as traições, que em outros romances cumprem o papel de “válvula de escape” de uma existência monótona, são insuficientes; caem no tédio depois de algum tempo.
Por fim, podemos destacar o suicídio como tema presente na obra. Aliás, é somente na morte que Emma encontra saída. A morte como solução para os problemas é um desfecho tipicamente dos românticos, aqueles que vivem ideologicamente uma utopia de vida. Portanto, este final trágico é uma crítica do autor realista à postura dos romancistas românticos.
Dizer que Flaubert é um marco na literatura universal é tautologia, mas não exagero. Basta lembrarmos que ele abriu caminho para escritores do porte de Henry James, Joseph Conrad, Virginia Woolf, James Joyce e Willian Faulkner. Assim, não é de se estranhar que na segunda metade do século XX o seu “Madame Bovary” inspirasse várias versões cinematográficas. Nem melhores nem piores que o livro. Mas diferentes.
---
Matheus Arcaro é Mestre em Filosofia pela Unicamp. Professor de Filosofia, Sociologia e História da Arte. Escritor com obras publicadas em conto, romance, poesia, infantil e filosofia, publicou recentemente seu oitavo livro, O umbigo de Adão (Editora Sinete).
Comentários
Postar um comentário