O deus das avencas - a identidade inacessível
Por Whisner Fraga
Este novo livro de Galera é composto por três novelas. Na
primeira, intitulada “O deus das avencas”, título extraído da música “Pelos
olhos”, de Caetano Veloso, o casal Manuela e Lucas espera um filho. A gestação
está na reta final e Manuela deseja um parto humanizado, com a ajuda de doulas,
de amigas e do companheiro. A história se passa em Porto Alegre, em 2018, às
vésperas da eleição que decidirá o novo presidente da república.
Manuela é professora de literatura na PUCRS e Lucas é
jornalista free lancer, atuando como ghost writer. Enquanto aguardam
o aumento da dilatação para se encaminharem ao hospital, decidem desligar a Internet,
e, de certa forma, se isolarem dos amigos e familiares até o nascimento da
criança. Em meio a esta convivência íntima, de muito diálogo e companheirismo, o
casal prevê ou fantasia algum tipo de caos social, desastre climático ou
rompimento com o estilo de vida urbano.
Há um clima de medo, de impotência, de desafio nesta novela.
Com parágrafos longos, com muitas descrições, o autor cria um ambiente um pouco
melancólico, como se a humanidade caminhasse inevitavelmente para a
intolerância ou para a extinção, em última análise. O nascimento de uma
criança, que poderia significar esperança, também é motivo de angústia para eles,
pois se sentem despreparados para tamanha responsabilidade. Esta primeira
novela é narrada em terceira pessoa por um narrador onipresente, que sabe de
tudo o que acontece.
Na segunda novela, intitulada “Tóquio”, a trama se passa em
um futuro próximo, na cidade de São Paulo. O narrador em primeira pessoa está
em uma reunião de um grupo de apoio e carrega a mãe em um dispositivo ovoide. Ou,
se não necessariamente a mãe, ao menos a consciência dela, que foi
transplantada para o objeto, chamado de pupa. As pessoas ali tentam compreender
como será a interação com a memória das pessoas queridas.
O planeta está devastado, algum tipo de praga contamina
tudo, superbactérias matam aqueles que vivem fora de ambientes controlados, há
um novo tipo de sociedade, mas ainda sem ter superado as divisões de classes e
outras características do passado. O narrador tem uma fazenda urbana, ocupando
dois andares de um edifício e lá cultiva hortaliças e cria peixes. Com a
escassez de matéria-prima e outras crises, as empresas que prestam este tipo de
serviço, de transferência de dados cerebrais, fecham e passam a entregar as
cópias destas mentes aos responsáveis legais.
O projeto inicial de fazer o upload dessas
informações em um humanoide, e por consequência atingir a imortalidade, tem de
ser abandonado. Por meio de descrições, longos parágrafos, diálogos profundos,
há um questionamento sobre o que é a vida (ou o que se tornará), sobre existir
ou não, segundo os ensinamentos do filósofo chinês Confúcio ou então do físico
austríaco Schroedinger, sobre identidade, configurações de relacionamentos.
A terceira novela, intitulada “Bugônia”, apresenta ao leitor
o planeta em um futuro distante, pós-apocalíptico. O título remete a um antigo
ritual mediterrâneo, baseado na crença de que as abelhas foram geradas
espontaneamente da carcaça de uma vaca. Narrado em terceira pessoa, conta a
história do Organismo, um grupo de indivíduos que vive em simbiose com a
natureza. Há uma peste do sangue, neutralizada pelo necromel que abelhas
produzem após se alimentarem de cadáveres. O grupo está dividido em crenças
aparentemente não antagônicas, há uma líder chamada Velha, que vai perdendo aos
poucos o controle e o comando da comunidade. Enquanto isso, a menina Chama vai
descobrindo que tem um importante papel nesta nova civilização.
Em uma linha temporal crescente, em que a primeira novela
ocorre no quase-presente, a segunda num futuro próximo e a terceira num futuro
mais distante, percebemos que o tema principal do livro é a vida em comunidade
e as transformações da sociedade frente a problemas econômicos, políticos e
ambientais. É como se as escolhas da primeira novela, o desrespeito com os
outros, com os animais, com a natureza, desembocasse no mundo da terceira
novela.
Há uma crescente perda de protagonismo dos homens, ele deixa
de ser superior aos outros animais para tentar viver em harmonia. Uma trégua
precária, pois os acordos não são mantidos para sempre, como se acreditava que
deviam ser. Há um fracasso nos planejamentos diante do menor imprevisto, ainda
que essas mudanças de rotas sejam apenas para beneficiar o próprio homem, em
primeira instância. Importante notar que, mesmo essas sociedades do futuro, não
conseguem romper com padrões da civilização anterior, há sempre heranças de
outros tempos, num claro recado de que o presente não está deslocado na
história.
Daniel Galera constrói uma metáfora poderosa da encruzilhada
em que a humanidade se encontra: ou compreende que faz parte de um ecossistema
e não é superior a ele nem manda nele ou caminhará para o inevitável
aniquilamento. Para mim, este é um livro de um autor maduro, que dá
continuidade a um projeto literário muito bem arquitetado desde a primeira
obra.
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