Anos de chumbo - imitações de glórias

 Por Whisner Fraga


Francisco Buarque de Hollanda (1944) é um escritor e músico carioca. autor da novela Fazenda Modelo (Civilização Brasileira, 1974), dos romances Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite derramado (2009), O irmão alemão (2014) e Essa gente (2019), todos editados pela Companhia das Letras.

Anos de Chumbo (Companhia das letras, 2021) é composto por oito contos, que versam sobre relações de poder assimétricas, baseadas no abuso e, algumas vezes, na violência. A força é o instrumento utilizado para subjugar, para controlar o outro, em diversas situações, locais e tempos.

Os anos de chumbo, muito bem retratados na capa do livro e no projeto gráfico, não são apenas aqueles da ditadura, como inicialmente o leitor pode julgar, mas são ampliados, quase onipresentes. Recorrendo à ironia, ao cinismo, ao humor, as narrativas apresentam situações-limite, personagens sujeitos a interesses, a egoísmos, submetidos a diferentes disputas que, de tão entranhadas no cotidiano, nos dão a falsa impressão de liberdade. Não há esta opção em uma sociedade desigual e injusta. Não há autonomia para quem oprime, assim como não há escolha para quem é oprimido, todos são manipulados. Este é o recado que os personagens anunciam ao leitor.

Dois contos do livro são escritos em terceira pessoa, seis em primeira e Chico Buarque se sai bem em todos. Obedece às regras da narrativa curta, ilustrando que escritor e narrador também estão atados a convenções. Todas as narrativas usam verbos no passado, estabelecendo um clima de recordações, como se qualquer mal estivesse apenas lá atrás e não chegasse até o presente. O leitor cai nessa armadilha.

O primeiro conto, intitulado “Meu tio”, é vertiginoso. Chico usa diversas figuras de linguagem para dar velocidade à trama, as ações se sucedem em espaços curtos de tempo, na velocidade do Pajero 4 x 4 da história. O enredo traz um Rio de Janeiro recente, com uma malandragem mais escancarada e intensa. Narrado por uma jovem, amante do tio do título, um sujeito poderoso, senhor de si e de todos, questiona os limites éticos de uma sociedade corrompida pelo instinto de sobrevivência. A renda deste senhor é provavelmente ilícita, já que carrega grandes quantias em dinheiro vivo enquanto é ameaçado por motoqueiros durante uma pausa no semáforo.

As aventuras do casal pelos bairros da cidade são descritas com naturalidade, como se todos procurassem extrair algum benefício para si debaixo de um sol que não culpa ninguém e isso fosse autêntico, justo. Talvez possa surpreender a elegância com que a moça expõe a sua versão dos fatos, já que não há pistas sobre sua aptidão com a palavra, mas é justamente essa falta de informações dos personagens que torna essa voz plausível.

O segundo texto, “O passaporte”, é sobre um grande artista, que está no aeroporto Tom Jobim, prestes a embarcar para Paris, e perde o passaporte e o cartão de embarque. Um inimigo do grande artista encontra os documentos e, claro, os joga no lixo. Ambos são poderosos, ambos tentam, nessa queda de braços, uma vingança, jamais possível. Uma briga em que inocentes são os únicos que pagam.

“Os primos de Campos”, o terceiro conto. Nele, os primos do título vêm passar as férias com a família do narrador, que se recorda dos tempos em que ainda era muito criança, com cinco, seis anos, e continua avançando até a juventude, a fase adulta. O tema do meio-irmão, caro a Chico Buarque, reaparece aqui, mas também outras questões profundas e atuais, como tráfico, milícias, racismo, corrupção.

No quarto conto, “Cida”, uma moradora de rua se torna próxima do narrador. Quando se vê grávida, constrói um intrincado aparato de fuga, que inclui a fantasia da adoção do filho pelo amigo. Que futuro pode ter essa criança? A seguir vem “Copacabana”. Chico homenageia artistas que admira – Pablo Neruda, Jorge Luís Borges, Ava Gardner, John Huston, Richard Burton, Romy Schneider, Alain Delon, entre outros. Utiliza técnicas do realismo mágico e mostra que a lembrança está sempre corrompida pela imaginação, como se os lapsos de memória devessem ser socorridos por fantasias.

No sexto conto, intitulado “Para Clarice Lispector, com candura”, o poeta I. J., de 19 anos deixa seus poemas na portaria do prédio de Clarice. Numa espécie de paralelo com a complexa protagonista de A paixão segundo G. H., Chico Buarque dá as iniciais I. J. ao bardo-herói deste relato, repleto de detalhes biográficos da escritora, que está às voltas com a publicação de “A aprendizagem ou o livro dos prazeres”, ali no final dos anos 1960.

Com uma linguagem simples, sem desvios, “O sítio” trata de um casal que aluga uma casa na Mantiqueira, onde pretendem se isolar do mundo, até que uma praga esteja sob controle. Eles se conhecem há pouco tempo, uma semana, quando ela toma essa decisão de viajarem. Ele vai, a contragosto, mas acaba se envolvendo com ela e desenvolvendo uma relação tóxica. Os dois estão em São José do Ribamonte, lugar fictício, uma mistura das cidades São José do Ribamar e São José do Belmonte. A mulher vai, aos poucos e intencionalmente, tomando o controle do relacionamento, ela assume o comando da situação, manipulando o namorado, o caseiro, espalhando dúvidas e paranoias, mostrando ao leitor como se dão as alternâncias de comando. Hoje alguém está por cima, amanhã não mais. Perene mesmo apenas o fato, que haverá sempre alguém conduzindo, determinando.

O livro finaliza com a narrativa “Anos de chumbo”. Chico Buarque faz uma interessante correspondência entre anos de chumbo e soldadinhos de chumbo, o desejo infantil de decidir o destino de outra pessoa ou mesmo de uma sociedade inteira. Um narrador adulto menciona algo ocorrido durante a infância dele, enquanto relembra guerras imaginárias que encenava com suas miniaturas. Isso é algo extremamente difícil de ser feito, já que o narrador adulto deve contar a história com o olhar de uma criança, ou seja, alguém do presente deve narrar acontecimentos do passado, mantendo o espírito, vocabulário e perspectiva infantis.

O leitor sabe, entretanto, da maturidade do narrador, mas o suspense depende de uma certa inocência da criança. Para não infantilizar a própria narrativa e, consequentemente, comprometer o texto, Chico Buarque mistura tempos narrativos. Para exemplificar, eis um trecho em que isso fica evidente: “Agora, pelo que entendi”. O narrador vai utilizando este artifício o tempo todo. Ademais, o leitor acaba ludibriado, pois é levado a pensar que a criança não interpreta adequadamente o que acontece ao redor, não intui a violência ao seu lado, as inúmeras traições, o complexo campo de batalha. O final surpreendente revela ao leitor que não é nada disso, não há ingenuidade em ninguém, o oprimido também tem seu sonho de opressor e quer torná-lo realidade.

Os oito contos são duros, crus, sem nenhum tipo de lirismo. Chico Buarque quer contar histórias e, por meio delas, denunciar uma sociedade que, há décadas, cultiva os mesmos erros.


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