O que mais pode acontecer?
As personagens das narrativas transitam por cenários íntimos e coletivos que, à primeira vista, podem parecer banais, mas logo se revelam como territórios propícios a diversos campos de tensão. São mães exaustas, filhos silenciados, mulheres acuadas, maridos indiferentes, chefes abusivos, jovens desajustados, um retrato de nossa sociedade patriarcal e hierárquica. Todos que habitam essa vasta galeria compartilham a experiência de vidas atravessadas por imperfeições e descompassos. Em “Roupa suja”, por exemplo, um bilhete desencadeia a revelação de segredos mesquinhos, enquanto que, em “É assim mesmo”, o preconceito é exposto de maneira brutal, principalmente porque ele vem encoberto por um véu de moral e costume. Já em “Preciso contar o que aconteceu naquele dia”, a opressão do assédio no ambiente de trabalho aparece como metáfora do sufocamento cotidiano, trazendo à tona a condição feminina frente ao poder masculino.
As situações narradas variam entre a crueldade explícita, como em “Contratempo”, em que uma personagem é violentada na rua, e a agressão velada, marcada pelo silêncio e pela omissão, como em “Alienados”, que trata da relação frustrada entre pai e filha. Outras histórias, como “Caleidoscópio” e “Se”, evocam atmosferas de suspense e desespero, em que o medo molda as ações. Já contos como “Até mais tarde” e “À tona” apresentam personagens que rompem a passividade, sugerindo a possibilidade de reação, ainda que tímida e incerta. Essa oscilação entre conformismo e ruptura confere dinamismo à coletânea. No conto “É amor, gente!”, o diálogo entre amigas revela a normalização da violência doméstica, ao mesmo tempo em que escancara a dificuldade de romper com relacionamentos abusivos.
O estilo de Pouchain equilibra lirismo e crueza. A linguagem é enxuta, mas marcada por imagens poéticas e metáforas que ampliam a densidade das tramas. Muitas vezes, o silêncio e o não dito têm tanta força quanto as palavras, instaurando um clima de latência, como se algo estivesse sempre prestes a explodir, a se romper. Há, em alguns casos, o senso de humor, a ironia, o nonsense, recursos que ampliam a complexidade dos relatos e impedem uma leitura unívoca.
O espírito do livro é o de expor a estranheza que habita o cotidiano, denunciando a hipocrisia social e a fragilidade das estruturas afetivas. A autora não oferece finais redentores; ao contrário, muitas vezes os relatos terminam em suspensão, refletindo o sentimento de incompletude da vida real. O título, neste sentido, resume bem a proposta: em um mundo permeado por ilusões, mentiras e pequenos delitos, quase sempre algo dá errado.
Essa visão crítica da realidade, aliada a uma escrita inventiva e sensível, coloca “Qualquer coisa deu errado” como uma obra significativa da literatura brasileira contemporânea, capaz de dialogar com as angústias e contradições de nosso tempo. Pouchain transforma as dores de seus personagens em matéria literária de alto nível e alerta o leitor que, na literatura, como na vida, a desordem também pode ser reveladora. A obra dá destaque às vulnerabilidades femininas no espaço privado e público e, ao mesmo tempo, revela formas de resistência, ainda que frágeis ou ambíguas.
De modo geral, o livro retrata a mulher como alguém constantemente exposto às engrenagens da violência, do preconceito, da invisibilidade e da sobrecarga, mas, ao mesmo tempo, Pouchain insere nesses retratos um olhar cheio de compaixão, sem reduzir as personagens à condição de vítimas: suas escolhas e gestos comunicam resistência. A coletânea de contos convida o leitor a uma reflexão sobre como a literatura pode dar voz a experiências femininas tantas vezes abafadas por um sistema que privilegia temas do universo masculino. O leitor não pode perder de vista o fato de que o meio artístico é um microcosmo de uma sociedade elitista, machista e patriarcal, de forma que livros como este de Lucia Pouchain são um oásis em meio à aridez reinante na literatura brasileira.
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Whisner Fraga nasceu em Ituiutaba, MG (1971) e atualmente reside em São Paulo. Formado em Engenharia Mecânica, Pedagogia e Marketing Digital, é professor universitário e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, tendo contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. Escreve para o coletivo Crônica do dia e mantém o canal Acontece nos livros, no YouTube, em que resenha obras de escritores contemporâneos. É editor na Sinete.

Quanta honra ver meu livro no 'Acontece nos livros' que acompanho há tanto tempo : )
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