Ermo e solidão


Na abertura do romance Ermo e solidão da autoria de Renan Barros, o protagonista Leandro e o leitor, são lançados de chofre em um  consultório médico onde ficam sabendo que um enfisema pulmonar, ameaça a vida de Leandro. O médico adverte-o firmemente que a causa evidente está associada  a seu tabagismo. Eis o deflagrar de uma situação limite em uma existência já complicada em função de fatores como o desgaste vivido num casamento de mais de uma década, e a conturbada relação extraconjugal que ele mantém ocultamente com uma jovem bem mais nova do que ele.

Tal conjuntura tem o poder de trazer à tona uma série de reflexões sobre os caminhos que ele trilhou em sua existência. Como deixou-se estar vegetando numa rotina monótona no trabalho como tradutor sem outras perspectivas profissionais? Como aquele grande amor pela esposa Marisa degenerou em relação de mera aparência, indiferença e falta de diálogo? Por quê não consegue estabelecer uma amizade íntima e amorosa com o filho Bernardo que vai entrando na adolescência? Como sintetizar se a relação que tem com a amante Sabrina é de amor genuíno, ou não passa de mera válvula de escape sexual? E como afinal, resolver todas essas questões sem o alívio enganoso do cigarro que o está matando aos poucos?

Ressalte-se um ponto de vista que a obra levanta quanto ao único fato indubitável de nossa existência. A morte. Se Leandro tivesse recebido mero diagnóstico de indisposição passageira, ou estafa, ou mesmo uma gripe fraca, a vida seguiria seu rumo sem outras alterações. Mas eis que entra em cena a “indesejada das gentes”. A morte, essa forjadora de almas no dizer e pensar de alguns. Para muitos de nós, a vida não passa de eterno vale de lágrimas. Para outros, há algum propósito, algum sentido nesse eterno ciclo de nascimento e morte do qual ninguém escapa. Aí o eterno enigma que não encaramos de frente, sequer nos damos ao trabalho de pensar com profundidade sobre. Entretanto, quando a proximidade do túmulo surge como possibilidade iminente, a vida parece exigir posições.  O conhecimento sobre a possibilidade da morte com data marcada provoca em Leandro um turbilhão de emoções e sentimentos  que ele não estava preparado para enfrentar. Quando uma possibilidade dessas nos ameaça, cai por terra o fatalismo cego, e cogitamos definitivamente que os acontecimentos não deixam de ser, em boa medida, reflexo de nossos atos e escolhas, sujeitos que estamos à íntima concatenação de causa e efeito. Mas aí já entramos no âmbito da investigação de realidades que transcendem a experiência sensível através da reflexão a respeito da natureza primacial do ser. A  obra não desce a tanto.

Leandro é o típico representante daquela ordem de  personagens que chamamos planas ou bidimensionais. Ou seja, um ser previsível e destituído de profundidade psicológica. É caracterizado pelo vício insuperável no fumo, uma obstinação em ser lembrado após a morte, e o drama íntimo que não consegue solucionar: o de deixar o relacionamento com a amante. Mais por medo do que o enfisema pulmonar lhe cause em termos de sofrimento, do que pelo discernimento claro do que seja afinal amor, companheirismo e lealdade para com a esposa. É o típico representante do macho predador que vê possibilidades de envolvimento até com uma desconhecida que encontra em um hotel onde vai fazer uma espécie de retiro para pensar que rumos daria em sua vida. Conseguirá nosso desafortunado personagem acertar essas arestas da existência? Vale a pena conferir o desfecho. 

Dentro do mundo de potencialidades que é o romance, a caracterização interna das personagens é fundamental. E esta fica em suspense, ou muito insuficientemente delineada em retalhos no decorrer da narrativa. As memórias íntimas que poderiam ser invocadas para uma investigação mais aprofundada de seu proceder não aparecem. Referimo-nos àquele tempo-passado, que se recobra por meio de uma cadeia de associações dinâmicas deflagradas pelo múltiplo e imediato impacto da realidade. Não que justifique caminhos, mas explica-os em boa medida dentro das escolhas  feitas. É sempre recurso que robustece a narrativa em boa medida. O labirinto mental cronometrado pelas sensações, ideias, pensamentos e vivências tem importância capital. Vale acrescentar que um romance convence e bem realiza-se como tal, quando nele se opera o consórcio harmonioso entre memória, observação e imaginação, assim mesmo nessa ordem crescente de valores. 

Um enredo como este de Ermo e solidão, suscita-nos inúmeras possibilidades outras como a de revelar o inusitado que se esconde sob o cotidiano de Leandro. O que pode ser extraordinário em uma vida assim aparentemente banal? Há carga dramática suficiente em uma existência como a do protagonista? E como escrever sobre essa vida, sem incorrer em uma voz narrativa que não seja apenas espelho dos fatos; um narrador capaz somente de repetir o cotidiano da personagem? Importante lançar mão de mais aprofundadas alusões à vida do personagem. Tal recurso narrativo, ao tempo em que caracteriza diferentes comportamentos humanos, direciona ou intensifica atitudes e decisões.

O escritor Henry James em “A fera na selva”, referindo-se às bases necessárias à arte da ficção, registrou que “a experiência [literária], nunca é limitada e nunca é completa; ela é uma imensa sensibilidade, uma espécie de vasta teia de aranha, da mais fina seda, suspensa no quarto de nossa consciência, apanhando qualquer partícula do ar em seu tecido. É a própria atmosfera da mente; e quando a mente é imaginativa – muito mais quando acontece de ela ser a mente de um gênio – ela leva para si mesma os mais tênues vestígios de vida, ela converte as próprias pulsações do ar em revelações”.

Não é casual o fato de o romance ser considerado o gênero mais complexo e ambicioso da narrativa. Seu ápice porque, diferentemente da crônica, do conto ou da novela, propicia investigações mais detalhadas de personagens, tramas e contextos. Por essência, sua maior extensão permite combinar múltiplos elementos narrativos, como personagem, enredo, tempo, espaço e ponto de vista.

Positivamente uma forma de arte rica e multifacetada que, para além de gerar agradáveis experiências estéticas no leitor, explora as complexidades da condição humana.  Mas também é verdade, e é preciso que se diga, que grandes escritores não se formam da noite para o dia. Escrita é processo contínuo de aprendizado que exige do autor, muita, muita leitura e esforço contínuo. Uma tal dedicação que passa ainda pela reescrita, revisão e aperfeiçoamento gradativo explorando sempre os vastos horizontes da criatividade.

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Ermo e solidão, romance de Renan Barros. São Paulo: Editora Sinete, 2025.

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Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contosDoze Contos & meio PoemaÀ flor da pele – Contos e Destinos que se cruzam - Romance. Participou de 30 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.

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