Personagens em colapso

Centenas de livros de ficção são publicados mensalmente pelas editoras brasileiras. Milhares, às vezes. Nosso país edita perto de doze mil novos títulos ao ano, uma quantidade que talvez não consigamos ler em uma vida. Quais livros são bons, quais livros valem nosso tempo, nossa atenção? Quem faz a garimpagem para o leitor, a classificação? Quem define o que vem a ser uma obra que valha a pena ser lida? Qual o destino dos poucos livros realmente bons, que correm o risco enorme de não serem descobertos? Os concursos literários premiam os melhores livros do ano ou as melhores obras de uma amostragem, segundo uma determinada comissão julgadora? São perguntas que me angustiam.

Quem se arrisca a pescar algum autor desconhecido, na estante, e a encarar uma leitura incerta? Ou é preferível que o leitor se curve ao conforto dos cânones? Ainda bem que, se o crítico não for demasiadamente paranoico, pode abandonar uma obra lá pela décima página, caso não atenda aos critérios mínimos de qualidade. Isso certamente poupa algum trabalho. Por outro lado, descobrir um bom autor pode ser uma tarefa gratificante. Caso de Igor Pires Leon, um ótimo escritor, pouco conhecido até nos meios literários independentes, mas não um iniciante.

“Veludo azul”(Nauta, 2024) é composto por dezessete contos, distribuídos em pouco mais de cem páginas. Isso indica que as histórias são breves, o que não quer dizer que sejam superficiais. O estilo, a voz presentes na obra revelam um contista muito seguro de seu ofício. 

Igor opta pela forma clássica de narrar, bem ao modo da teoria cunhada por Edgar Allan Poe. “Uma visita inesperada” abre a coletânea e é uma boa surpresa. Um encontro entre duas velhas conhecidas dá um tom despretensioso à trama, o que causa uma certa desconfiança. A história vai se desenrolando, desembocando em diversos suspenses, em assuntos paralelos, perpendiculares, até acontecer o inesperado: quem lê já está completamente seduzido. Ao retornar para casa, após o papo com a amiga, a protagonista encontra um desconhecido na sala e, desse encontro absurdo, jorram surpresas. Tudo isso em uma linguagem eficiente, sem rodeios, sem floreios, embora ainda lírica. Uma abertura surpreendente.

Em seguida vem “Rubião”, uma escolha infeliz. O roteiro batido não deixa muito espaço para a perícia do autor. Aqui, um homem contrata um matador de aluguel para que o elimine. O resto é conhecido de outros tantas ficções com este mesmo mote. O leitor pode parecer descontente com essa mudança de rumos e resolver abandonar a leitura, o que não recomendo. Talvez, em uma segunda edição, seja interessante rever a presença deste texto.

No terceiro conto, “Cartas de minha mãe”, Igor retoma as rédeas da boa ficção e volta ao caminho da qualidade literária. Uma tia, em um lar de idosos, envia cartas à sobrinha. É uma premissa arriscada dar voz a uma personagem, ainda mais por meio de missivas. Corre-se o risco de a voz do criador se sobressair, o que, felizmente, não acontece. Há uma tensão que nunca chega ao clímax, um silêncio estrondoso nas incompreensões, nas metáforas, nas interpretações. Há uma ingenuidade calculada nas palavras, um ponto de vista único que confere a tudo uma mistura de desabafo e de parcialidade. A narradora está jogando com os fatos, com a trama e não é necessário mais do que isso para uma boa ficção.

A partir daí vêm outros ótimos contos permeados por uma profunda melancolia, embalados pela miséria e limitações dos relacionamentos humanos. A música “Blue Velvet” como desculpa para reviver um passado que é muito mais bonito perdido e conservado no tempo, na memória. Há, nestas solidões, um descaso apaixonado com o destino, como se a pergunta “por que não?” ecoasse nas frases, nos diálogos, nas entrelinhas.

Tudo é devastador, como quando acontecem grandes imprevistos: o ex-marido, tido como morto, aparece vivo, na celebração das bodas da ex-esposa. A bela mulher, que vive a tranquilidade de uma quase velhice e um novo casamento estável de décadas, fica sem rumo. O que virá dessa situação extraordinária senão mais e mais sobressaltos e estranhezas? 

Igor Pires Leon se aventura num quase realismo mágico em “O jovem que ousou rir”, uma prosa bem construída, com uma linguagem direta, mas recheada de melancolia e de críticas a um modelo de sociedade que jamais funcionará. Um dos melhores momentos do livro que traz, também, excelentes minicontos. Nestas narrativas curtíssimas, o escritor tem de apurar as ferramentas do idioma e Igor faz isso de modo competente, sobretudo ao usar o discurso indireto livre e utilizar recortes precisos no espaço e no tempo. Ali, também, há o narrador nada confiável, uma ousadia muito bem-vinda na literatura contemporânea. O escritor deveria investir mais nestes minicontos.

A única ressalva, além dos dois ou três contos com temas surrados, é um pequeno (e eventual) desleixo com a revisão. Às vezes uma palavra é repetida de forma não intencional, três, quatro vezes em um mesmo parágrafo. Nada que uma releitura cuidadosa não resolva. Alguns problemas de diagramação, como sílabas separadas por hifens no meio da página, que poderiam ser resolvidos numa eventual segunda tiragem.

Nenhuma dessas observações comprometem de maneira significativa a obra, recomendada com entusiasmo. O trabalho que as editores independentes vêm fazendo com autores pouco conhecidos, mas de qualidade, é louvável e deve ser reverenciado pelo meio literário. Uma forma bem interessante de prestar homenagem a estas editoras é consumindo as publicações que lançam. 


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