A anti-terapia para um tempo distópico


Alexandre Willer traz nas histórias de seu novo livro “Placebo para o dia-a-dia” (Ed. Folhas de Relva, SP, 2023) uma panóplia de situações, ocorrências, encontros & desencontros, nos quais seus personagens transitam em permanente desassossego, num embate nos becos-sem-saída de suas experiências existenciais.

Como sinaliza o sugestivo e instigante título, não há cura ou escapatória para os passivos e dèbacles que contornam as vidas desses viventes que digladiam com suas realidades, sejam elas sociais, emocionais, afetivas ou psicológicas – toda tentativa de cicatrização, cura ou fuga redunda na frustração ou tiro no pé.

Os desatinos, o desencanto, as dores & delícias  dialogam entre si nesses contos, a partir de um observatório sutil e exegético deflagrado pelo autor sobre os flagrantes do quotidiano e as contingências de uma contemporaneidade que tem experimentado tantas crises e dilemas nos últimos anos, como o fracasso diante da pandemia da covid-19 e a barbárie das guerras que resultam do conservadorismo e dos preconceitos de toda ordem. São tensões que compõem um cenário de desafio e estranhezas, indicando que viver é sempre um exercício contra o caos e a morte, tarefa de Sísifo a renovar a cada dia nossas demandas insanáveis e seus inevitáveis contenciosos.

Como assinala Daniel Manzoni-de-Almeida ao referir-se a esse livro como uma escrita contra a desilusão, “O efeito placebo, a resposta fisiológica produzida pelo nosso corpo diante de um estímulo vazio, pode ser traduzido como a metáfora do simulacro em que nada que nos é dado, em verdade, não é verdadeiro. É a resposta vazia ao nada. Talvez o único resultado palpável do efeito placebo dos arrastados anos da pandemia seja o que já conhecemos: o fascismo nosso de cada dia.” 

Esse é um livro que espelha nossas contradições individuais e as dicotomias coletivas, cartografa desvios humanos numa sociedade cada vez mais arraigada a valores condicionados ao capitalismo aviltante e espoliativo e às mordaças pseudo-morais da agenda política, quando a humanidade inteira é refém de um sistema acachapante e avassalador, que transforma cada indivíduo em produto.  

Entre textos mais extensos e minicontos, muitas vezes tênue a fronteira entre o conto e a crônica, entre a invenção e a memória, o autor vai traçando um painel de nossas discrepâncias. Versátil, sua diversidade conceitual abarca questões que estão na ordem do dia desse milênio que, mal nasceu, já apodrece com suas dívidas, escombros e sequelas de uma violência impregnada em todos os campos, resultado da falência ética e dos sentimentos, que culminam num declínio civilizacional aviltante. 

Sem dourar a pílula e com o mesmo e contundente despudor de um Roberto Piva que, na poesia deu porrada na solidão e escrachou nossas mazelas (“sonhando saídas/ definitivas da/ cidade-sucata”), Alexandre Willer também abre suas picadas na selva de vertigens e no cipoal convulsivo que constituem a condição humana. E com o amálgama de certa dose de escárnio e ironia corta fundo na epiderme do tecido social, abrindo possibilidade para um salto dialético a partir de sua imersão filosófico-reflexiva sobre esse mundo e esse tempo eviscerados pelas crises. Sua agudíssima percepção não nos vacina contra a orgia de tanta escuridão, mas vaticina, em clave niilista, para percebermos que o apocalipse tem muitas faces e vai sendo gerado a conta-gotas. Em seus contos, a vida como ela é, é desvelada como numa sequência de palimpsestos, cada camada está a indicar que o autor, assim como Fernando Pessoa, vem nos mostrar, com incontornável pessimismo: “A espantosa realidade das coisas/é a minha descoberta de todos os dias.”  

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Ronaldo Cagiano nasceu em Cataguases (MG) e reside em Portugal. Estreou com "Palavra engajada" (poesia, 1989) e, dentre outros, publicou "Dicionário de pequenas solidões" (contos, 2007), "O sol nas feridas" (poesia, 2013, finalista do Prémio Portugal Telecom), "Todos os desertos: e depois?" (contos, 2018), "Cartografia do abismo" (poesia, 2020) e "Arsenal de vertigens" (poesia, 2022). Venceu o Prêmio Brasília de Produção Literária 2001 com o livro de contos "Dezembro indigesto" e obteve o 3.º lugar no Prêmio Jabuti de Literatura 2016 com "Eles não moram mais aqui" (contos). Escreve resenhas e artigos para diversos jornais e revistas. Organizou as coletâneas "Poetas mineiros em Brasilia" (2001), "Antologia do conto brasiliense" (2004) e "Todas as gerações - O conto brasiliense contemporâneo" (2006).

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