"Gótico nordestino" – fantasmagoria sob o sol



Cristhiano Aguiar (1981) é um escritor paraibano, autor de Na outra margem, o Leviatã (Lote42, 2018) e de Gótico Nordestino (Alfaguara, 2021), obra vencedora do Prêmio Biblioteca Nacional, em 2022. Participou da antologia Granta: os melhores jovens escritores brasileiros, em 2012. Tem textos traduzidos para o inglês e espanhol e publicados nos Estados Unidos, Inglaterra, Argentina e Equador. É um dos produtores do podcast afinidades eletivas.

Gótico nordestino é composto por nove contos. É importante contextualizar o que este Gótico do título significa na obra de Aguiar. Em literatura, é um gênero dedicado ao sobrenatural, ao sombrio, está ligado ao mistério e ao terror. A obra que Cristhiano vem construindo está assentada nessas bases, algo pouco explorado na literatura brasileira.

Ainda que conectados ao terror, os contos deste livro estão mais de acordo com a fantasmagoria, termo diretamente ligado à ilusão, aos sonhos, no espírito de Lewis Carrol. As narrativas são ambientadas nas cidades de Campina Grande e Recife, ou nos estados da Paraíba e de Pernambuco, sobretudo, o que explica o segundo termo do título, nordestino. 

A obra trata de tradições, de memória e de pertencimento. No imaginário popular há um reducionismo dos costumes nordestinos, normalmente associados ao sol, ao calor, ao dia. Cristhiano Aguiar vem dizer que há um legado de histórias fantasmagóricas no Nordeste, ainda que elas possam se passar à luz do dia e no campo. 

Embora haja pequenos elementos que permitem ao leitor situar as histórias em Pernambuco e na Paraíba, as narrativas são universais. Os fantasmas trazidos aqui podem ser os literais, o sobrenatural, mas também há os fantasmas no sentido figurado, políticos, sociais, os fantasmas interiores em cada um. É um livro que permite múltiplas leituras.

O conto de abertura, intitulado Anda-luz é sobre um menino que está no sertão, possivelmente início dos anos 1930, quando o graf zeppelin passa pelo Nordeste, rumo a Recife. A história se passa na Paraíba, assolada pela febre amarela e o menino Chiquinho recebe da mãe a incumbência de entregar um bilhete a um cangaceiro. No caminho, a criança, em seu rito de passagem, enfrenta e tenta superar os medos da infância. 

Depois o conto As onças, em que há uma epidemia destes felídeos em uma cidade. Uma mãe e uma menina precisam sair de casa para comprar mantimentos para elas e para uma visita inesperada. Simultaneamente, algumas pessoas estão se transformando em onças não importam os motivos, as origens dessas metamorfoses, mas apenas os fatos. O tom onírico está presente neste conto, conduzido por um narrador onisciente, que dá mais credibilidade aos acontecimentos abordados. É um texto sobre a solidão que uma pandemia traz às pessoas, mas também sobre um animal mítico, que ganha tons humanos, que busca a sobrevivência a qualquer preço e que se compadece e se reconhece como parte do que está acontecendo.

O terceiro conto, Lázaro, traz a pandemia de covid-19 para a história. Um acontecimento insólito dá o tom da narrativa: algumas pessoas, vítimas da doença, começam a ressuscitar. Daí a referência ao personagem bíblico Lázaro. Mas é um processo que não se dá conforme esperado: os lázaros, esses ressuscitados, voltam como zumbis. As personagens adotam um tom de desencanto, de desilusão. Cristhiano Aguiar subverte as características clássicas das histórias de zumbis, para trazer algo fresco à literatura brasileira contemporânea.

O próximo conto é Firestarter e é bem construído, embora termine de forma muito abrupta, sem uma reflexão mais profunda a respeito das consequências e implicações de tudo o que ocorre na trama. Narra um futuro não muito distante, em que incêndios viram atração para grupos de caçadores e catalogadores de fogos, dessas combustões espontâneas. Uma premissa muito interessante, que flerta com o realismo mágico e com a ficção especulativa, destoando um pouco do restante do livro. Há alguns deslizes com a linguagem, algumas palavras repetidas várias vezes, de forma não intencional, mas sem comprometer o conto.

Na narrativa seguinte, A mulher dos pés molhados, Cristhiano Aguiar traz a intolerância, o patriarcalismo para uma história de suspense sobre uma maldição a que uma família estaria sujeita. O conto seguinte, Tecidos no jardim, o mais curto do livro, o leitor encontra, novamente, a zoomorfização. O próximo texto é intitulado A noiva e tem uma trama sobre fantasmas. Novamente há um tom de delírio, de truque, de ilusão nesta história. Este ambiente é reforçado pelo medo das crianças que protagonizam a história, o que é uma forma bem inteligente de criar esse cenário de dúvidas, é uma boa forma de amplificar a influência do desconhecido.

Anna e seus insetos é um conto sobre o medo inconsciente. Há uma linguagem lírica, descrições bem urdidas, enxutas e, ao mesmo tempo, completas. A última narrativa do livro é intitulada Vampiro, é ambientada no campo, e fala sobre estereótipos, sobre o temor do que é diferente, sobre conservadorismo, temas transportados para uma história de suspense, novamente, um suspense criado pela dúvida. Os personagens veem o que querem e, principalmente interpretam como querem. O texto é narrado em primeira pessoa do plural e em primeira pessoa do singular, escolha muito acertada, pois deixa sempre um rastro de incerteza: acreditamos no narrador? Esta é a beleza da literatura, esse tom de ambiguidade, essas lacunas para o leitor preencher.

Neste livro, Cristhiano Aguiar apresenta um nordeste desconhecido dos brasileiros, o retrato da região vem de lá para fora e quebra com o senso-comum de que lá não seja possível o terror, a fantasmagoria, o suspense. Não é somente a noite capaz de ocultar o desconhecido, o sol também produz suas sombras.

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Whisner Fraga é mineiro de Ituiutaba, autor dos livros “As espirais de outubro”, romance, Nankin, 2007, “Abismo poente”, contos, Ficções, 2009, “O que devíamos ter feito”, Patuá, 2019, entre outros. participou das antologias “Os cem menores contos brasileiros do século”, organizada por Marcelino Freire e “Geração zero zero”, de Nelson de Oliveira. O livro de contos “Usufruto de demônios”, Ofícios Terrestres, 2022, ficou entre os 5 finalistas do Prêmio Jabuti 2023. Teve contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. É responsável pelo canal Acontece nos Livros, no YouTube, em que fala sobre obras da literatura contemporânea.


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