Por Whisner Fraga
Sérgio Sant’Anna (1941 - 2020) foi um escritor
carioca, estreou na ficção com o livro O sobrevivente (Estória, 1969) e
publicou obras seminais de nossa literatura, como Notas de Manfredo Rangel,
Repórter (Civilização Brasileira, 1973), este O concerto de João
Gilberto no Rio de Janeiro (Ática, 1982), A senhora Simpson (Companhia
das Letras, 1989), O monstro (Companhia das Letras, 1994), Um crime
delicado (Companhia das Letras, 1997) e O homem-mulher (Companhia
das Letras, 2014). Venceu 4 vezes o prêmio Jabuti e foi traduzido em mais de
dez países.
Este O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro é
uma obra composta por 13 contos, sendo que o mais conhecido, o mais estudado, é
o de abertura, intitulado Cenários, uma narrativa pungente. Como sugere
o título, o narrador propõe diversos cenários, que por si só já são histórias
completas, para narrar a violência, a solidão, os temores, a difícil
experiência do envelhecimento, a condição humana, mesmo. Não à toa o pintor
Edward Hopper aparece algumas vezes neste texto, sugerindo uma linguagem experimental,
como é comum na obra de Sérgio Sant’Anna.
Em Dueto, o segundo conto, o narrador apresente um
casal em um carro, em um drive-in, ambos estão em um relacionamento profundo. É
apresentada a versão da mulher, por ela e a versão do homem, por ele sobre este
vínculo. Aos poucos a história deles vai confluindo, eles parecem se fundir, se
confundir, vão se tornando um só, vão se tornando a mesma história. Muito interessante
a forma com que essa tensão se desenvolve, num suspense crescente.
Segue Lusco-fusco, um conto sobre a pobreza, o medo
do bicho barbeiro transmitir chagas, o destino, a sorte, sobretudo. Um conto
relativamente curto para os moldes de Sérgio, com uma linguagem enxuta, sem
exageros.
O leitor chega, então, à narrativa O recorde. Nela,
um ciclista colombiano está no Brasil, para tentar um recorde solitário,
estranho. Sérgio começa a radicalizar a questão do observador, do narrador e do
autor, tentando, ao mesmo tempo diferenciá-los, para depois misturá-los na
narrativa.
O próximo conto, Na boca do túnel, trata de um
assunto que não aparece muito em nossa literatura, o futebol. Um técnico que
nunca jogou, mas ama o esporte, treina um time pequeno e vai jogar ao Maracanã
contra uma equipe grande, com uma folha de pagamento de humilhar qualquer
oponente. Os atletas quase amadores do time pequeno sabem que vão lá para
apanhar, para perder, mas todos ainda têm algum tipo de esperança, pode ser que
algo aconteça. Um conto muito bem construído, em que há dois focos narrativos, um
sobre o esporte e, outro, sobre a solidão, os desafios, a injustiça, o acaso.
Seguem-se contos sobre política, perseguição política,
ditadura, uma ironia, um paralelo com Franz Kafka, sobre o processo de perda da
lucidez, sobre a loucura em si, sobre a objetificação do corpo, sobre pesadelos
que nos perseguem a vida inteira.
O último conto, O concerto de João Gilberto no Rio de
Janeiro, é o mais experimental deste livro. Trata da história de um
concerto que João Gilberto não deu no Canecão e da importância dessa ausência
na própria obra de João Gilberto. Aqui, Sérgio questiona o fazer
literário, a narrativa, os modos de narrar e os próprios limites da literatura,
em contraposição a outras artes. Ele, ao mesclar várias visões narrativas,
incluir o autor como personagem, tenta e consegue algo novo, talvez os primórdios
da autoficção, movimento que se iniciou no final dos anos 1970. Sant’Anna
faz um elogio à genialidade de João Gilberto, tentando, ele próprio, criar um
texto que esteja à altura de tudo o que o músico fez. É um conto cheio de
surpresas, reviravoltas, fragmentado, repleto de silêncios, como a obra de João
Gilberto.
Sérgio Sant’Anna sempre praticou a transgressão, novos modos
de narrar, construiu formas que subverteram o tradicional e trouxeram algo
realmente inovador à literatura e à arte.
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