A vergonha - a identidade estruturada na linguagem
Por Whisner Fraga
Acho desnecessário apresentar Annie Ernaux (1940) ao
público brasileiro. Após o Nobel aconteceu uma avalanche de artigos sobre a
obra dela, o que a tornou conhecida por aqui. Direto ao ponto, inicio esta
breve jornada pela novela A vergonha (Fósforo, 2022) ressaltando dois pontos que para mim são
fundamentais.
Primeiro, a tradução de Marília Garcia. Publicado
originalmente em 1997, pela Gallimard, a linguagem não traz grandes desafios a
quem se arriscar a verter o texto para o português. Nesta edição de 2022 da
Fósforo, que resenho aqui, encontrei alguns pequenos deslizes, que credito à
falta de uma revisão mais acurada.
Segundo, a classificação da obra. A ficha catalográfica da
edição brasileira traz o termo “romance autobiográfico”. Para mim é um
excelente rótulo. Por estas bandas isso é sinônimo de autoficção, o que traduz
de forma razoável o projeto literário da escritora francesa. Annie Ernaux
parte de uma experiência pessoal, expandindo-a para algo maior, tanto em termos
espaciais, sugerindo interpolações para outros territórios sociais, como também
temporais, sugerindo uma universalidade intencional.
A narradora (e a escritora, em última análise) passam a ser
parte do corpo social por meio do individual, do privado e, partindo da
intimidade da convivência familiar para alcançar uma cultura comum, uma época.
A expansão é gradativa, ela parte do lar, chega à vizinhança e o caminho acaba
por desembocar no bairro, na cidade e finalmente, no país. Annie Ernaux
usa, como ponto de partida, a memória e tem consciência de que relembrar é
reinventar, mas ainda mais do que isso, reinterpretar.
Os primeiros parágrafos deste livro são fundamentais, é
preciso prestar atenção ao que eles apresentam. A narradora, uma
pré-adolescente de doze anos, presencia uma discussão entre os pais, que
descamba para a violência explícita. O pai agarra a mãe, a arrasta para a
mercearia que a família toca e, segurando a mulher pelo pescoço ou pelos
ombros, ameaça a companheira com uma pequena foice usada para cortar lenha. É
claro, essa agressão desencadeia um enorme trauma na criança, tanto é que ela
só consegue escrever sobre isso quarenta anos após o ocorrido.
A novela trata dessas vontades não concretizadas e da
vergonha pela falha e pela incompreensão, quando a recordação é traduzida para
outro tempo, outro espaço e outro suporte. Annie Ernaux tem consciência
de que a linguagem é um filtro para a realidade. A narrativa, portanto, é um
reexame, é, paradoxalmente, uma ficção. Esta cena reconstruída quatro décadas
depois, em forma de texto, com todas as implicações referentes ao tempo de
espera, de maturação, é também uma farsa, a verdade possível.
A partir deste quase assassinato, a narradora descobre seu
lugar na sociedade, compreende que faz parte de uma família provinciana, em que
a mãe é uma religiosa fervorosa, dominadora e o pai um homem comum, machista,
insípido. Esse provincianismo incute na narradora um sentimento de
inferioridade e daí a vergonha diante de tudo. Para compensar essa sensação,
ela precisa se destacar em tudo o que faz, mas de forma um pouco relapsa,
despretensiosa, para, ao mesmo tempo, ser aceita.
Annie Ernaux novamente recorre a fotografias e outros
objetos para reconstruir a memória e reorganizar os fatos. Já no início temos a
narradora analisando fotos antigas, tentando verificar com estes retratos, se o
passado factual coincide com a lembrança. Mas as fotos são, igualmente, apenas
uma versão, um instante, um instantâneo e são alvo de interpretações. Ainda que
a narradora recorra a essas provas, elas devem passar pelo crivo da escritora,
transformada por novas experiências. Em determinado momento do romance, pode-se
ler a afirmação, contundente: “Não existe memória verdadeira sobre si mesma.”
A linguagem de Annie Ernaux é crua, sem
floreios, direta, objetiva, mas centrada na análise da própria língua, dos
limites da palavra. Não há nenhum tipo de excesso, o texto é límpido, enxuto,
simples, ainda que o tema e as análises não sejam.
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