As mulheres de Tijucopapo – oralidade na construção da memória

 Por Whisner Fraga



 

Marilene Felinto (1957) é uma escritora e tradutora pernambucana. Autora de, entre outros, O lago encantando de Grongonzo (Guanabara, 1987), Postcard (Iluminuras, 1991), Jornalistamente incorreto (Record, 2001), Obsceno abandono – amor e perda (Record, 2002). Atualmente é colunista do jornal Folha de São Paulo.

As mulheres de Tijucopapo (Paz e Terra, 1982) venceu o prêmio Jabuti na categoria Literatura Adulta, Autor Revelação e também o prêmio da União Brasileira de Escritores.

Esta nova edição, da Ubu, de 2021, traz o prefácio de Beatriz Bracher, o posfácio de Leila Lehnen, um ensaio sobre o conjunto da obra, de João Camillo Penna e quatro textos, chamados de fortuna crítica - o prefácio de Marilena Chauí, publicado originalmente na primeira edição, a orelha de José Miguel Wisnik, uma resenha da poeta Ana Cristina Cesar, que saiu no jornal Leia Livros, em 1982 e uma crítica da Viviana Bosi, da Folha de São Paulo, de 1992, quando saiu a segunda edição do livro, pela Editora 34. Estes textos extras valorizam ainda mais esta obra genial.

O título deste romance remete às heroínas de Tejucupapo. No século XVII esta comunidade histórica protagonizou um levante feminino contra os colonizadores holandeses. Atualmente a região de Tejucupapo é chamada de Goiana e fica em Pernambuco. Conhecida como Batalha de Tejucupapo ou Batalha do Monte das Trincheiras, estas mulheres lutaram ao lado de homens, derrotando cerca de seiscentos soldados, transformando água fervente, pimenta e pedaços de pau em armas.

A autora se inspira neste fato histórico para criar um livro com uma protagonista feminina, Rísia, uma mulher negra, nordestina, pobre e retirante, que vai para São Paulo com a família, nos anos 1960 e carrega uma raiva, uma revolta contra a mãe, que nasceu em Tejucopapo, mas se rendeu às convenções de outras sociedades, aceitou a passividade, abrindo mão do espírito guerreiro das ancestrais. Tem raiva também do pai, um homem violento, machista, cheio de amantes, que valoriza a sociedade patriarcal. Esta personagem, tão bem construída, é uma homenagem à ancestralidade.

Rísia é áspera, não gosta de pessoas que pedem, mas daquelas que conseguem, como confessa, em determinado momento, no romance. Ainda assim ela é sensível, profundamente humana e sofre desesperadamente em um mundo injusto. A raiva, a aspereza são, claro, armas para a sobrevivência. É um romance sobre fomes, sobre pobrezas, sobre injustiças sociais, sobre as mulheres em uma sociedade machista, misógina, sobre o poder da oralidade na construção da identidade, sobre a masculinidade tóxica e mais. Uma obra escrita por uma jovem de vinte e dois anos, que revolucionou, lá no início dos anos 1980, o tratamento literário sobre temas tão caros.

É importante ressaltar que não é apenas um romance-denúncia, é uma obra de arte, muito bem elaborada, transgressora na linguagem, na trama. Marilene Felinto usa todas as ferramentas disponíveis para criar um texto lírico, pungente, profundo, questionador e cria uma das personagens mais fortes da literatura brasileira. É preciso sobreviver nesta sociedade completamente desigual, mas também é fundamental ter sucesso, inclusive financeiro. A protagonista se orgulha de viajar constantemente em aviões da Varig (uma ironia hoje, já que o país voltou ao tempo em que só ricos podem viajar de avião). É alguém que não se deixa engolir totalmente pela cidade grande, pelas convenções, pelo capitalismo. O pouco que se consome na megalópole dá origem a esta raiva, que nutre como se alimentasse um animal de estimação.

Rísia está voltando para a cidade natal de sua mãe, Tejucopapo, em uma viagem que dura nove meses, uma gestação, para encontrar a ancestralidade, para se unir às guerreiras, reaprender o orgulho, reacender a coragem e lutar uma nova luta. São outras as batalhas agora. Exilada em São Paulo, percebe-se desterrada também em Tejucopapo, não tem mais o sotaque nordestino em São Paulo nem em Tejucopapo. Qual é sua identidade? O que ela se tornou? Pertence a quê? É uma viagem de descobertas. Por isso Rísia precisa falar em uma língua que não é e nunca foi sua, o inglês. Ela quer escrever uma carta para a mãe, mas precisa ser em um idioma estrangeiro, ela precisa se livrar de tudo o que aprendeu, para reaprender a si própria. Para apreender.

A linguagem traz elementos da oralidade, é dinâmica, usa repetições como forma de marcar território, de enfatizar sentimentos, para mostrar que Rísia não é só revolta, não é só violência, é ternura também.

O livro é tão denso que pode ser estudado sob diversas perspectivas – a questão da literatura feminina (ou feminista), o patriarcado, a negritude, o estilo, a oralidade, entre outras. Acima de tudo é uma obra de arte, como mencionado aqui, e merece também a leitura sob este viés.

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