Criogenia de D - caleidoscópio de sentidos

 Por Whisner Fraga




Leonardo Valente (1974) é um jornalista e escritor carioca, autor de Apoteose (Mondrongo, 2018), obra classificada no Prêmio SESC de Literatura, O beijo da Pombagira (Mondrongo, 2019), livro finalista do Prêmio Rio de Literatura, Calote (Mondrongo, 2020), entre outros. É um dos organizadores da coletânea Antifascistas (Mondrongo, 2020). Jornalista e doutor em Ciência Política, é professor de Relações Internacionais da UFRJ.

D. é o personagem principal e narrador deste romance e, dele, não sabemos o gênero ou a orientação sexual e esta é uma informação importante. Assim, por convenções e limitações de nossa língua portuguesa, que não possui o gênero neutro (embora alguns discordem), usarei o masculino quando me referir a D.

O protagonista deste romance avisa o leitor que é preciso morrer durante o processo de criogenia, é preciso conservar, nesta morte, o corpo como ele é, ainda vivo. É parte do processo tecnológico, não há o que ser feito, pelo menos por enquanto, e é neste paradoxo que a história é construída.

D. ora usa o pronome masculino ora o feminino, para se referir a si próprio ou para se localizar no mundo, a depender do espaço, do tempo e de outras convenções. Trata-se de um claro questionamento sobre machismo, misoginia, questões de gênero. Mas também uma subversão da linguagem, uma denúncia, no mínimo. Ainda essas escolhas podem refletir a multiplicidade de D., um ser rico, que se deixa habitar por diversas outras criaturas. Usar a linguagem para caracterizar diversas personalidades de uma pessoa é um exercício complexo e Valente se sai muito bem nessa empreitada.

O narrador pretende, desta forma, uma espécie de criogenia: retratar-se ainda em vida, mas se entregando à morte, como se conseguisse paralisar o tempo para se retratar naquele instante, para compreender esse recorte e, quem sabe, expandir esse entendimento e se completar como indivíduo. D. fala sobre os cinco maridos, todos se chamam Damião (são um só?), expõe seus desejos sexuais, concretizados ou não, apresenta dores, preferências, modo de viver, mas alerta que a própria essência é fraudulenta, que é uma “referência parcial e incompleta” de sua história. Alerta o leitor que pode estar mentindo, que pode estar fantasiando, iludindo, completando a imprecisão da memória com invenções. Essa farsa, é claro, é típica da ficção - quanto do escritor há na obra? Esta informação é importante? O autor traz ao leitor estes questionamentos.

O texto, neste romance, a palavra, em última instância, é suporte para o sentido. Assim, quando o personagem está partido, dividido, escreve em versos, se está desalinhado, descuidado, não uniformiza o texto entre as margens a página, quando quer revelar o íntimo, o avesso, inverte cores – palavra branca sobre fundo preto. Influência do concretismo, utiliza a forma como tentativa de ultrapassar o limite que a palavra impõe ao escritor e, claro, também ao narrador.

Há diversas intertextualidades, diálogos com outros escritores, pensadores, personagens. Tolstoi, Hilda Hilst, tantos outros intelectuais desfilam pela obra, auxiliando o leitor neste processo de construção do personagem, mas também ajudando o próprio D. na criação de si, nesta introspecção tão profunda e definitiva rumo à consciência de seu lugar no mundo. Esse tom de memória permite que o personagem caminhe por tempos e espaços, sem maiores preocupações, não é preciso nenhuma linearidade no texto ou na trama, já que é o nosso prazer que escolhe os temas da lembrança.

Até as paixões do protagonista são farsa e ele não foge dessa confissão. Mesmo a culinária, um prazer de D., é posta em xeque, de forma até cruel. É como se este narrador precisasse ser implacável consigo mesmo, revelando todas as trapaças, todos os embustes. Essa dissecação, essa brutalidade carrega um tom de mentira também, que pode vir da submissão aos maridos, à rotina, aos costumes, à moral. Essa resignação soa igualmente como um engano, pois o leitor não consegue imaginar um personagem tão interessante se curvando a etiquetas e convenções.

É um romance bem escrito, que persegue transgressões, é uma confissão, uma história bonita, narrada de uma maneira lírica e, ao mesmo tempo, ríspida, crua. É nesse atordoamento que o leitor encontra a chance de compreender algo, de sentir e transgredir juntamente com D., de condenar qualquer servilismo a uma sociedade patriarcal, machista e preconceituosa.


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